A ciência, assim como todas as formas de produção do conhecimento humano além da pura fantasia, é passível de equívocos, que rotineiramente são apontados como rebeldia, negados com veemência, e somente após muita insistência aceitos como obviedades. Poucos casos foram tão paradigmáticos para reforçar a falibilidade crassa da ciência como o caso das baratas atômicas.
Reinava antigamente um senso comum até relativamente ridículo, que afirmava que as baratas possuíam resistência prodigiosa às forças imparáveis da energia atômica. A explicação ofertada pelos institutos oficiais era das mais canhestra, canastrona e abilolada. Segundo eles, que tudo vêem e que pretendem nos engabelar, a longevidade dos animais se deve a uma espécie de lentidão na multiplicação de células, que faria que a destruição causada pela energia atômica simplesmente não penetrasse nas células por tempo o suficiente para que causasse algum mal a longo prazo aos pequenos rastejadores.
Mas eu, como não sou bobo, desconfiei disso tudo e fui averiguar.
Minha primeira suspeita foi da flagrante conveniência da história toda. Já parou pra pensar que é simplesmente absurdamente estranhamente completamente redundantemente conveniente que não haja testemunhas de qualquer barata sobrevivente de um ataque nuclear? Oras, somente duas cidades foram bombardeadas por bombas nucleares, correto? Você alguma vez viu algum sobrevivente descrever que, em meio ao morticínio descontrolado, ao calor infernal da bomba que incendiou tudo, inclusive as pessoas, uma ou dias baratinhas escaparam dançando a conga? Se tem o vídeo me mostre, eu nunca vi, e olha que procurei bastante.
Aì comecei a pesquisar. Me empolerei no Google e saí pulando entre janela e janela compilando dados úteis, informações importantes sobre o modus vivendo das pessoas, a sua dieta, o tipo de lixo que produziam, o habitat das baratas, a sua formação metabólica, a topografia japonesa, os acidentes com grande número de vítimas no oriente, a radiação lançada por todas as coisas – inclusive baratas – os registros documentais proféticos, as leituras de auras de insetos – também chamada de entocromolastria, troço complicadíssimo.
Eis que, como na maioria das descobertas que marcaram a história da humanidade, o acaso interveio iluminando as mentes sedentas pelo conhecimento. Em uma de minhas sessões de investigação no circuito de blogs independentes, que não são tributários da velha mídia engajadas na reafirmação do status quo, me deparei com um padrão outrora insuspeito sobre comportamento animal. Ocorre que em diversas ocasiões traumáticas, especialmente nas hecatombes naturais, se detectou um modo de reação por parte da fauna que é, no mínimo, pouco ortodoxo. Em diversas áreas prestes a serem atingidas os animais misteriosamente parecem pressentir o perigo, fugindo em debandada para longe. Há diversos relatos (se não acredita em mim procure você no Google, a internet não mente) testemunhando que os animais, nesses momentos tão marcantes, se movimentaram como um corpo de dança, orquestrado, com o perdão do trocadilho, como numa fuga. Dada a imensa complexidade do ato, a miríade de variáveis concertadas, só pude chegar a uma conclusão, inescapavel: os animais dialogavam.
Se os animais falavam, eu precisava falar como eles. Assim comecei a aprender o idioma das baratas.
Estou empenhado nessa árdua tarefa há alguns meses, e tive progresso vistoso. Percebi empiricamente – não dá para confiar nos registros biológicos, notavelmente enviesados – que a comunicação dos bichinhos só pode se proceder a um volume inaudível para nós. Com muito cuidado registrei o som dos passos de vários espécimes que coletei, identificando pauatinamente um padrão. Depositando alimento na saleta preparada para os experimentos (jamais seria desumano o bastante para confinar meus espécimes a uma jaula) mensurei a frequência de suas patinhas antes e depois da alimentação, ponto em que se movimentavam de forma mais regular e rápida, notadamente denotando satisfação por ter obtido seu alimento. Após algum tempo passei a fomentar interações entre os espécimes, e fui aprendendo mais sobre suas formas casuais de interação, seus costumes sociais e, como não podia deixar de ser, personalidades.
Apenas recentemente obtive fundamento o suficiente para motivar esta carta que agora envio, destinado a divulgar meus achados e fazer correr mundo a fora a verdade que iluminará as trevas da mentira que hoje nos corrói. Com ajuda dos relatos bastante completos de Alberto e sua mãe, Cora, que me repassaram informação que receberam de seus pais, que por sua vez, dos seus predecessores em uma linha milenar de narrativa oral – ou seria rítmica? – o incidente no Japão foi bem mais interessante do que a mentira deslavada que espalham por aí.
Eis que os pequenos, conscientes de toda a tragédia instalada a seu redor, tendo visto bombardeios inúmeros, tiveram medo. Prepararam um plano de contingência muito engenhoso, que envolvia a construção de túneis subterrâneos para aproximadamente 14 km rumo ao centro da terra, onde esperariam o final do conflito. Aqui a narrativa fica um pouco menos crível. De acordo com Cora, as profecias diziam que um espírito elevado se ergueria entre as baratas para conduzir seu povo à paz. Já Alberto enxergava esse pretenso salvador como um guerreiro, que faria vingança contra todos os inimigos das baratas. Ora, da minha perspectiva de investigador não-participante, é bastante razoável, até simplório, apontar essa diferenciação na narrativa. A visão de mundo de Cora, pautada pela empatia natural (fator biológico) da genitora age como fator de vida sobre a criação, que se pauta pela manutenção dessa vida, construindo um discurso de apologia à paz. Já Alberto, como jovem, tangido pelas emoções, claramente prefere uma narrativa mais belicista, em que a verdadeira virtude seja justamente a capacidade do guerreiro.
Quem quer que seja a figura mítica, ela pressentiu o perigo iminente do desastre final, correu pra fora do esconderijo, negando todas as admoestações e deixando para trás tudo que amava e se lançou como um foguete de asas marrons rumo ao sol negro que ameaçava devorar a terra. Do choque seja do amor da mãe ou da força do guerreiro, variando de acordo com a narrativa – surgiu um sol, que consumiu a todos os que observavam, covardes, sem a mesma verve daquele que se sacrificara pela vida de todos. Como resultado, toda a vida, fora a das baratas foi dizimada.
No instante em que meus me deparei com essa verdade carregada de tanta paixão me convenci, finalmente, que estava errado esse tempo todo. A ciência fora tola. O que manteve as baratas vivas foi sua paixão, ainda que seja travestida de mitologia, que as deu um motivo para seguir adiante. Minha descoberta final, pautada robustamente pelos fatos que aqui descrevo, é que esses animais, ainda que movidos por suas crenças tolas e muitas vezes risíveis, contróem ideias completas determinadas somente a reafirmar seus projetos íntimos de existência. Contra a dureza da existência, eles fantasiam.
São bichos engraçados, esses que são escravos, não possuem a luz da razão.