TOGETHER WE STAND

Divided we fall…we fall…we fall… ♫

Agradecemos a todos que acompanharam e contribuíram com o Six Machine: Writing Edition. A partir de agora o 6M será um projeto unificado sob a bandeira única da edição original, concentrando em uma só página todas as fotografias, ilustrações e literaturas. Visite!

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Reminiscência

Brendan levantou-se sobre as patas traseiras, rabo roçando na terra depredada.

A planície era uma imensidão de destroços ferrosos, um mar de vapores cinzas que expiralavam numa dança ágil de muitas asas. Brendan não ousava chegar perto. Sua irmã havia sido intoxicada pelo veneno do solo poroso ano passado. Como se dizia na comunidade de coelhos, ainda levaria muito tempo para aquilo se dissipar.

Ele suspirou. As orelhas muito tesas recaíram para a nuca, indispostas. Retornou à sua toca seguindo uma das trilhas próximas. Essa noite iria acasalar mais uma vez, para mais uma vez esperar e mais uma vez se decepcionar.

Quando afinal viria sua ninhada?

Diálogos animalescos entre humanos

-Tem cada bicho interessante… olha só os desse livro.

-Tem mesmo.

-Veja o morcego, por exemplo. As asas deles são na verdade grandes mãos com dedos longos. E todas as aves são assim, também. Isso tira um pouco da mágica da possibilidade de termos pessoas com asas ou dragões. É uma impossibilidade anatômica.

-Por outro lado, tem uns bichos mais esquisitos que dragões ou pessoas com asas, e que existem. O Ornitorrinco, por exemplo, tem bico, pêlos, põe ovos…  Existe também o Dragão-de-Komodo, que parece até um dinossauro que sobreviveu à extinção.

-Falando em dinossauros, mais engraçada ainda é a galinha. Quem diria que ela é a parente mais próxima do tiranossauro existente até hoje?

-Mas não eram os papagaios?

-Não sei ao certo. Seja um ou outro, é impressionante da mesma forma. Se vivo hoje, um tiranossauro nos comeria ou faria de bicho de estimação, o que fazemos com galinhas e papagaios. Será que é o castigo da natureza pelo erro dos ancestrais? Ter sido um dinossauro tão cruel e sanguinário foi análogo a comer do fruto proibido, e tornar-se aves subjugadas ao ser humano foi o castigo.

-Imagina o Deusnossauro olhando para baixo e dizendo para o Tiranossauro: eu falei para você não matar seus semelhantes e comer sua carne, agora você terá como castigo ser uma galinha, e o mesmo castigo será transmitido aos seus descendentes!

-Hahahah, pois é. A gente poderia reescrever a Bíblia com Tiranossauros. Seria muito engraçado.

-Não, cara. Acho isso uma sacanagem.

-Não vamos para o inferno por causa disso, amigo. Quem foi para o inferno foram os dinossauros.

-Não, cara, to falando que seria um desrespeito fazer isso com um livro religioso.

-Ué, mas você não gosta da HQ do Thor?

-Ok, você venceu.

-Cara, o bicho mais esquisito de todos, sabe qual é?

-Qual?

-O ser humano.

-Por quê diz isso?

-A gente não pensa só em sobreviver e se reproduzir. Nós queremos ser grandes. Descobrir coisas, construir coisas nunca antes vistas, transformar a natureza.

-Mas isso não é, de certa forma, um desejo de viver para sempre? Tipo, pelas descobertas, obras… vivermos para sempre mesmo que não vivamos.

-Hum… é possível que sim. “Não há virtude sem imortalidade.”

-Ivan Karamazov. Eu sempre preferi o Aliocha. Ele é mais sincero, bondoso e menos pirado.

-Igual a você.

-E você é como o Ivan.

-Não, eu sou como o Fabiano.

-Quem?

-Vidas Secas. “Você é um bicho, Fabiano”.

-Mais bicho que Baleia.

-Exatamente.

-Será que cães imaginam sua imortalidade na pós-vida, tal como Baleia e seu paraíso de Preás?

-Não sei. Vamos aprender a ler pensamentos animais primeiro. Mas, ei, já estamos atrasados para a aula. Melhor entrarmos.

Medo

Ele olhava para o mundo à sua frente e temia o que tinha de fazer. Pular ou não pular? Onde estava era tão alto. Saltar parecia tão perigoso. Ele não queria ir! Mas alguém o chamava; ele podia ouvir o chamado e a vontade de atendê-lo, lançando seu corpo no vazio, começou a lutar dentro dele contra o desejo de permanecer em um lugar seguro. Outros tinham ido na sua frente, acatando o convite feito por aquele doce som. Como resistir? Mas, como ir? Outra vez o suave bramido, quase uma canção, adentrou suas orelhas e, agora, cedendo completamente ao desejo de segui-lo, ele engoliu o temor e jogou seu corpo no ar. Caiu de pé, nas quatro patas, intacto, e seguiu sua mãe e seus irmãos rumo à tigela de leite.

O Caso Pungente das Baratas Atômicas

A ciência, assim como todas as formas de produção do conhecimento humano além da pura fantasia, é passível de equívocos, que rotineiramente são apontados como rebeldia, negados com veemência, e somente após muita insistência aceitos como obviedades. Poucos casos foram tão paradigmáticos para reforçar a falibilidade crassa da ciência como o caso das baratas atômicas.

Reinava antigamente um senso comum até relativamente ridículo, que afirmava que as baratas possuíam resistência prodigiosa às forças imparáveis da energia atômica. A explicação ofertada pelos institutos oficiais era das mais canhestra, canastrona e abilolada. Segundo eles, que tudo vêem e que pretendem nos engabelar, a longevidade dos animais se deve a uma espécie de lentidão na multiplicação de células, que faria que a destruição causada pela energia atômica simplesmente não penetrasse nas células por tempo o suficiente para que causasse algum mal a longo prazo aos pequenos rastejadores.

Mas eu, como não sou bobo, desconfiei disso tudo e fui averiguar.

Minha primeira suspeita foi da flagrante conveniência da história toda. Já parou pra pensar que é simplesmente absurdamente estranhamente completamente redundantemente conveniente que não haja testemunhas de qualquer barata sobrevivente de um ataque nuclear? Oras, somente duas cidades foram bombardeadas por bombas nucleares, correto? Você alguma vez viu algum sobrevivente descrever que, em meio ao morticínio descontrolado, ao calor infernal da bomba que incendiou tudo, inclusive as pessoas, uma ou dias baratinhas escaparam dançando a conga? Se tem o vídeo me mostre, eu nunca vi, e olha que procurei bastante.

Aì comecei a pesquisar. Me empolerei no Google e saí pulando entre janela e janela compilando dados úteis, informações importantes sobre o modus vivendo das pessoas, a sua dieta, o tipo de lixo que produziam, o habitat das baratas, a sua formação metabólica, a topografia japonesa, os acidentes com grande número de vítimas no oriente, a radiação lançada por todas as coisas – inclusive baratas – os registros documentais proféticos, as leituras de auras de insetos – também chamada de entocromolastria, troço complicadíssimo.

Eis que, como na maioria das descobertas que marcaram a história da humanidade, o acaso interveio iluminando as mentes sedentas pelo conhecimento. Em uma de minhas sessões de investigação no circuito de blogs independentes, que não são tributários da velha mídia engajadas na reafirmação do status quo, me deparei com um padrão outrora insuspeito sobre comportamento animal. Ocorre que em diversas ocasiões traumáticas, especialmente nas hecatombes naturais, se detectou um modo de reação por parte da fauna que é, no mínimo, pouco ortodoxo. Em diversas áreas prestes a serem atingidas os animais misteriosamente parecem pressentir o perigo, fugindo em debandada para longe. Há diversos relatos (se não acredita em mim procure você no Google, a internet não mente) testemunhando que os animais, nesses momentos tão marcantes, se movimentaram como um corpo de dança, orquestrado, com o perdão do trocadilho, como numa fuga. Dada a imensa complexidade do ato, a miríade de variáveis concertadas, só pude chegar a uma conclusão, inescapavel: os animais dialogavam.

Se os animais falavam, eu precisava falar como eles. Assim comecei a aprender o idioma das baratas.

Estou empenhado nessa árdua tarefa há alguns meses, e tive progresso vistoso. Percebi empiricamente – não dá para confiar nos registros biológicos, notavelmente enviesados – que a comunicação dos bichinhos só pode se proceder a um volume inaudível para nós. Com muito cuidado registrei o som dos passos de vários espécimes que coletei, identificando pauatinamente um padrão. Depositando alimento na saleta preparada para os experimentos (jamais seria desumano o bastante para confinar meus espécimes a uma jaula) mensurei a frequência de suas patinhas antes e depois da alimentação, ponto em que se movimentavam de forma mais regular e rápida, notadamente denotando satisfação por ter obtido seu alimento. Após algum tempo passei a fomentar interações entre os espécimes, e fui aprendendo mais sobre suas formas casuais de interação, seus costumes sociais e, como não podia deixar de ser, personalidades.

Apenas recentemente obtive fundamento o suficiente para motivar esta carta que agora envio, destinado a divulgar meus achados e fazer correr mundo a fora a verdade que iluminará as trevas da mentira que hoje nos corrói. Com ajuda dos relatos bastante completos de Alberto e sua mãe, Cora, que me repassaram informação que receberam de seus pais, que por sua vez, dos seus predecessores em uma linha milenar de narrativa oral – ou seria rítmica? – o incidente no Japão foi bem mais interessante do que a mentira deslavada que espalham por aí.

Eis que os pequenos, conscientes de toda a tragédia instalada a seu redor, tendo visto bombardeios inúmeros, tiveram medo. Prepararam um plano de contingência muito engenhoso, que envolvia a construção de túneis subterrâneos para aproximadamente 14 km rumo ao centro da terra, onde esperariam o final do conflito. Aqui a narrativa fica um pouco menos crível. De acordo com Cora, as profecias diziam que um espírito elevado se ergueria entre as baratas para conduzir seu povo à paz. Já Alberto enxergava esse pretenso salvador como um guerreiro, que faria vingança contra todos os inimigos das baratas. Ora, da minha perspectiva de investigador não-participante, é bastante razoável, até simplório, apontar essa diferenciação na narrativa. A visão de mundo de Cora, pautada pela empatia natural (fator biológico) da genitora age como fator de vida sobre a criação, que se pauta pela manutenção dessa vida, construindo um discurso de apologia à paz. Já Alberto, como jovem, tangido pelas emoções, claramente prefere uma narrativa mais belicista, em que a verdadeira virtude seja justamente a capacidade do guerreiro.

Quem quer que seja a figura mítica, ela pressentiu o perigo iminente do desastre final, correu pra fora do esconderijo, negando todas as admoestações e deixando para trás tudo que amava e se lançou como um foguete de asas marrons rumo ao sol negro que ameaçava devorar a terra. Do choque seja do amor da mãe ou da força do guerreiro, variando de acordo com a narrativa – surgiu um sol, que consumiu a todos os que observavam, covardes, sem a mesma verve daquele que se sacrificara pela vida de todos. Como resultado, toda a vida, fora a das baratas foi dizimada.

No instante em que meus me deparei com essa verdade carregada de tanta paixão me convenci, finalmente, que estava errado esse tempo todo. A ciência fora tola. O que manteve as baratas vivas foi sua paixão, ainda que seja travestida de mitologia, que as deu um motivo para seguir adiante. Minha descoberta final, pautada robustamente pelos fatos que aqui descrevo, é que esses animais, ainda que movidos por suas crenças tolas e muitas vezes risíveis, contróem ideias completas determinadas somente a reafirmar seus projetos íntimos de existência. Contra a dureza da existência, eles fantasiam.

São bichos engraçados, esses que são escravos, não possuem a luz da razão.

O Papagaio

(…)

Abro a janela e eis que, em algazarra, a amaldiçoar, penetra uma mancha:

– é um Papagaio já bem velho e carrancudo, egresso de outros carnavais.

Como um folião passa, de ressaca, e, sem notar sequer meu susto,

adeja e pousa sobre a cumbuca – uma cumbuca que usei para chá de erva,

bem sobre a pia; e se conserva ali, na cuíca de erva,

cantarolando um quaisquais.

Ao ver da ave folgazã e verdelenga a debochadíssima figura,

desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meu bar (velho demais).

“Sem crista embora, ó Papagaio boca-suja e singular” – então lhe canto –

“não há pindura. Pede o que queres, alma da rua, ó penas verdes,

qual tua bebida, ó Papagaio, qual o veneno que tu sorves!”

E o Papagaio: “Aguarrás”.

Sonho de Jaçanã

Virou-se para a mata, como se estivesse fugindo de algo.

Corria desesperada, tropeçando em raízes protuberantes e afastando galhos fortuitos. Seu fôlego falhava e sua cabeça zonzava de tonturas. Olhou para trás.

Nada.

O pé de mangueira em que se apoiava estava tão carregado que as mangas fartas pareciam planetas na órbita de sua copa. Ela pensou em colher uma ou duas, pois não sabia quanto tempo ficaria ali, fugida. Seu corpo estava marcado de púrpura, os tons de vermelho cambaleantes na pele.

Adiante, uma clareira. O som de farfalhar chegou-lhe aos ouvidos, estranhamente ritmado, mas ainda assim natural, como o alvorecer pelas folhas do jacarandá.

“Quem tá aí?”, uma voz floreou.

“Mariana”, disse a moça, assustada.

“Pra que veio?”

Mariana não sabia o que dizer. Entre o susto e o pânico, olhou para o que tinha em mãos e respondeu. “Trouxe manga.”

A voz pareceu dar-se por satisfeita. “Ôxe, apois entre, mulhé. Entre que é pra num pegar sereno.”

Mariana deu passos trôpegos e atravessou.

Na clareira, um casamento suntuoso e impressionante deixou-a perplexa. Convidados ornidos de folhas de bananeira deleitavam-se em manjares de coco e tapiocas álvaras, penduricalhos de cana enfeitavam tendas, criaturinhas esvoaçavam-se por entre os matagais floridos e em meio a longuíssimas mesas. A música de sanfona permeava os ares, e no meio havia um altar, com um arco decorado por flores de maracujá e um casal ilustre dando-se as mãos enquanto conversavam animadamente com uma juíza de paz vestida de água do mar.

“O que é isso?”, perguntou Mariana, sem tirar os olhos dos noivos.

A voz riu. “Que menina desorientada, rapaz. É o casamento de Jaçanã, Rainha do Agreste. Agora me dê essa manga, aposto que ela vai gostar que só.”

O último suspiro de Esmeralda Riveros

Ao se despedir de Salomão Riveros, seu marido desde que se entendia por gente, Esmeralda suspirou uma reclamação no ouvido de seu único amor.

 

– Você podia ter sido mais fiel.

 

.

 

A história começa e termina diversas vezes até chegar a esse ponto, o ponto de quebra, o sinal definitivo de que Esmeralda morria. Deixava de existir. Abandonava seu homem e todas as noites em claro pensando no que ele fazia enquanto não estava em casa. Salomão se deitara com centenas de mulheres nos quase sessenta anos de casamento, e apenas uma delas era sua esposa; sua esposa, imutável, reconhecível, inamovível de seu posto silencioso de porto seguro. Mulher que há muitos anos já se perdia para si mesma, esquecendo de rostos, pessoas e lugares. A história estava terminando, e por isso Esmeralda perguntou.

 

– Quantas, Salomão?

 

E Salomão respondeu:

 

– Uma só, Esmeralda.

 

Silêncio.

 

.

 

Minutos depois, tomados pela estranheza que só a sinceridade pelas metades traz a um casal antigo, Esmeralda não se conteve e retomou o assunto:

 

– Quantas, Salomão?

 

– Uma apenas.

 

– Por que mentir? Por que me deixar levar a mágoa para o túmulo? Logo eu, que vivi por você?

 

– Porque todas elas eram a mesma, meu bem. Eram o mesmo vulto de carne e osso, com tons de pele misturados, com risos e choros iguais. Cabelos lisos e ondulados, dentes brancos e amarelados, alguns faltando talvez. Eram todas a mesma mulher, a mulher que não eras.

 

Esmeralda chorou.

 

.

 

Já no final do dia, a frágil senhora Riveros retomou algo de sua consciência. Não encontrou o marido no quarto. Levantou-se debilmente e, apoiada nas paredes, cambaleante de fraqueza pura, rondou a casa em busca de um beijo de adeus.

 

Não encontrou.

 

Quando Salomão retornou ao lar, sabia que tinha sido sua última traição. Pensada, bem pensada, para que não tivesse que responder mais perguntas e não tivesse que pensar no adeus. Quando avistou na varanda a silhueta de sua Esmeralda imóvel na cadeira de balanço, Salomão Riveros ajoelhou-se e deixou as lágrimas caírem de seus olhos.